As recentes tragédias da região serrana do Rio de Janeiro precisam gerar reflexões mais
longas e aprofundadas do que o tempo que se gasta na busca de culpados. Talvez, nunca
antes na história desse país, haja tanta necessidade que pessoas tecnicamente capacitadas
levantem suas vozes sobre o vozerio pastoso de aventureiros que tratam questões complexas
com a superficialidade dos incautos ou dos pouco comprometidos com as coisas certas. As
interpretações rasteiras, fáceis e pouco corajosas, conduzem quase sempre a soluções erradas
dos problemas.
O diário da catástrofe expõe a grandeza de um povo solidário mas, também, a pobreza com
que são tratados, no Brasil, certos princípios fundamentais “do pensar sobre as coisas” e, a
partir daí, os atos conseqüentes, ou seja, ações, decisões, enfim, o fazer do dia à dia, que,
infelizmente, vai se construindo à revelia do verdadeiro conhecimento dos problemas e ao
arrepio das vozes de tantos profissionais competentes que dedicam suas vidas ao estudo,
pesquisa e aprofundamento cientifico. Temos que discutir as questões em suas raízes e
em suas múltiplas faces. Sem patrulhamento ideológico, sem demagogia. E as catástrofes
costumam dar essas oportunidades, diante da perplexidade geral com os fatos.
Podemos começar lembrando que os desastres envolvendo fenômenos da natureza (não só
no Brasil), continuam a gerar discursos bastante responsáveis mas, lamentavelmente, práticas
relutantemente irresponsáveis. Não saímos do discurso para a prática, tanto quanto somos
pródigos em produzir leis e descumpri-las.
Continuamos a nos comportar sob uma trágica ótica antropocêntrica, com o homem se
vendo em separado do mundo. Ele cá e o mundo acolá. Como se o humano não pertencesse
a natureza mas, isso sim, a visitasse com um olhar e um fazer superior. Uma dissociação
descabida que outorga aos humanos a supremacia da ação, ao seu prazer. Insistimos em nos
ver como seres superiores e não como integrantes de um sistema dinâmico, em uma natureza
em constante transformação. Intrigantemente parece que “andamos para trás”, na forma de
nos vermos participando da vida no planeta. Encontramos, há séculos atrás, a compreensão de
que é falso o dualismo homem e natureza, simplesmente porque a natureza inclui o homem.
O filósofo alemão Nietzsche, por exemplo, foi pródigo em suas colocações a esse respeito. As
culturas mais primitivas, os indígenas, compreendiam isso quando atribuíam alma a tudo que
existisse sobre a face da terra. Assim, pedras, árvores, vegetação em geral, tudo tinha alma,
tanto quanto os homens. Todos, igualmente possuidores de alma, se nivelavam no convívio
na natureza. Por isso os reverenciavam. Os índios não polemizaram com Niectzsche (e sua
aversão a “alma”). Apenas, por outros caminhos, também confirmavam a compreensão sobre
a igualdade, e não a supremacia do homem sobre os demais da natureza.
Seria isso pura discussão de teoria em momento que necessitamos de ação? Não, não. Quando
os fundamentos do pensamento falham, as soluções são encaminhadas erradas! Não devemos
ter medo do saber nem vergonha de estudar e conhecer para formular propostas.
Não vemos o homem como parte da natureza, apesar dos nossos discursos ambientalmente
corretos. Não adianta alegarmos que os desastres são imprevisíveis, que áreas intocadas se
desfizeram, que isso e que aquilo. O fato é que interferimos na natureza de uma forma brutal.
A chuva que chega aqui na forma de enchente, se formou em algum lugar mais distante, onde
o espaço territorial possivelmente não era mais suficiente para abrigar tantas pessoas que,
por sua vez, invadiram espaços que deviam estar preservados para que a natureza, em sua
ebulição, espraiasse as águas livremente.
Deixamos construir cidades inviáveis e gastamos fortunas em soluções efêmeras, porquanto
tudo mais vai continuar a crescer desordenadamente e a infra estrutura se tornará
rapidamente insuficiente. Não investimos em transportes, mesmo sabendo que o conceito de
distancia não se mede mais por kilômetros, mas por tempo de deslocamento. Poderíamos usar
áreas mais afastadas dos amontoados que são hoje nossas cidades.
Carecemos de políticas claras, visão de futuro, projetos de longo prazo. Precisamos discutir
a gestão pública, o modelo de proliferação de instancias municipais despreparadas, a
assistência técnica aos que necessitam, a formação de mão de obra qualificada e sua
interiorização.
Precisamos revalorizar o estudo e a competência técnica, de modo que o os políticos possam
escolher soluções que não tenham sido sacadas das cartolas de mágicos mas, isso sim, das
profundezas do conhecimento. E que sejam cobrados por isso.
Josué setta*
Josué Setta, Engenheiro Civil, Professor da UERJ, (Ex) Secretario Executivo do Min. da Ação
Social, e (Ex) Assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da Republica.
publicado no Jornal MONITOR MERCANTIL, em 17/01/2011