Novas Abordagens Necessárias em Projetos e Obras de Engenharia - Josué Setta (Dcct-fen)

Criada em 17/05/2010 14:28 por mmc | Marcadores: art fen

Visando a promover o acesso disciplinado a parques e áreas ambientais protegidas, o Governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio de Decreto de outubro de 2007, estabeleceu parâmetros procurando ditar normas básicas sobre a implantação de estradas com características especiais, denominadas de “Estradas Parque”. Recentemente o Governo vem, também, desenvolvendo esforços para estimular ações visando a efetiva implantação de rodovias com essas caracteristicas, entre elas a RJ 163 Capelinha -Visconde de Mauá; a RJ 165 Paraty - Cunha e a RJ 149 Mangaratiba- Rio Claro.

Essa não é uma iniciativa pioneira ou única do Estado do Rio de Janeiro, nem do Brasil, mas, tampouco perde importância por isso. Ao contrário, a disseminação deste “novo olhar” para o projeto e a execução de determinadas obras de estradas com tipologia especial, aponta para mais um dos esforços no sentido de se fazer uma releitura do que deve ser a relação do homem com o ambiente e a ambiência em que se insere.  Esse, exatamente, é o propósito deste artigo, que toma a liberdade de se valer dessas iniciativas (concretas, objetivas) de governo, para discutir algumas questões que se colocam, antes, no plano teórico, conceitual e, porque não dizer, filosófico, necessárias à discussão da questão ambiental.  

Muitas definições têm sido cunhadas para conceituar o que seja uma Estrada Parque. Sem nos atermos a uma delas, é válido ressaltar seus propósitos, uma vez que o importante é que estes sejam compreendidos em sua essência e, principalmente, atendidos.

Fundamentalmente, uma Estrada Parque é uma rodovia que se caracteriza por atravessar área de especial interesse ambiental e que deve considerar a preocupação primordial de zelar por todo patrimônio natural ali encerrado, por resguardar sítios arqueológicos, estruturas de valor histórico, preservar valores culturais estabelecidos em seu entorno. Deve, ainda, procurar valorizar a beleza oferecida pelo local, facilitando e estimulando a contemplação pelos visitantes, convidando-os, assim, a usufruírem da estética, da história e da cultura da região.

É importante que se atente para o conjunto de condicionantes implícitas e decorrentes da adoção desse conceito de estrada. Trata-se de uma proposta arrojada, desafiadora, que define a primazia da natureza e a relevância de um conjunto de valores intangíveis sobre o tecnicismo exacerbado, que vigora desde que a ciência especializou e parametrizou as ações humanas. Há algo de fundamental quando se diz que um novo conceito deva impregnar uma obra de engenharia, a partir da preponderância de “um conjunto de valores intangíveis”. A sociedade contemporânea não está acostumada a tratar aspectos intangíveis (como a beleza e a cultura, por exemplo) como prevalentes sobre outras questões de natureza concreta, material e racional. As emoções, as dimensões da condição humana, de uma forma geral, não são, habitualmente, levadas em conta, como parâmetro de projeto, particularmente em determinados tipos de obras de engenharia. No entanto, quando se afirma que uma estrada deve, não só, respeitar o ambiente natural mas, também, induzir a contemplação das belezas locais e promover a valorização do “encontro” homem-natureza, significa que o que está sendo proposto é uma mudança de paradigma, com todas as dificuldades daí decorrentes.

O estabelecimento de uma qualificação diferenciada, para o caso de estradas representa, assim, uma iniciativa inovadora e, acima de tudo, indutora de uma nova forma de abordar projetos e obras (nesse caso rodoviárias), alterando, especialmente, a maneira como se deve compreender a relação que o homem estabelece com esse tipo de empreendimento. Essa abordagem, que a concepção de “estrada parque” está agora incorporando, já vem sendo buscada em projetos e obras de outros tipos, tais como obras de barragens, intervenções em APAs, por exemplo, que obedecem a exigências ambientais com preocupações semelhantes, pelo menos em seus aspectos legais e normativos.

As estradas são, tradicionalmente, compreendidas como elementos de ligação, pelos quais os usuários passam sem a “intenção de permanecer”. Pode-se dizer que, inconscientemente, as estradas são compreendidas como espaços com os quais não se estabelece nenhum “vinculo de permanência”, mesmo que temporário. Através delas se efetuam deslocamentos para visitar um determinado destino que não é a própria estrada. Trata-se, pois, de algo que o usuário, ao tempo que a utiliza, deixa-a, também, “para trás”.

Um olhar mais atento quanto às características preconizadas para uma estrada parque, sugere a necessidade de uma reflexão sobre as alterações nesse entendimento. Seus propósitos induzem à interação entre o passante e a rodovia.  Mais que isso, integram a rodovia no espaço em que se insere, fazendo com que a estrada deixe de ser, apenas, um “elo”, para ser um componente integrante da região em que se implanta. Nesse sentido, a própria estrada passa a ser um espaço de visitação, podendo o trajeto ser transformado em um fim, em si, na medida em que a estrada oferece uma oportunidade não só de desfrute contemplativo, mas de contato direto com a natureza e, em muitos casos, de resgate da história e da cultura da região e dos homens que ali deixam suas marcas. Nesse caso, a estrada atua como agente facilitador da aproximação física entre o visitante e o local. Minimiza-se a externalidade intrínseca a uma obra (estrada) que cumpre a função essencial de fazer uma “ligação” entre dois pontos distantes, e ganha-se com uma nova compreensão de que o espaço de deslocamento (estrada) é um continum da própria área atravessada. Ambiente e rodovia se integram.

Existem implicações profundas nessa mudança de abordagem. Na medida em que se abandona a visão segmentada de mundo – o usuário aqui, a natureza ali e a estrada acolá - onde o universo é visto como um somatório de partes independentes entre si, abre-se caminho para que o homem possa compreender-se como parte integrante de um universo que, na verdade, é uno. Esta é, certamente, uma das questões primordiais de toda a problemática ambiental que tem ocupado as agendas de discussões. Não é exagerado dizer que, enquanto o homem não perceber a unicidade e abandonar sua postura prepotente com relação à natureza (que ele pensa dominar), não se conseguirão empreender mudanças essenciais, no sentido da preservação ambiental, da sustentabilidade, porque seus verdadeiros sentidos não estarão sendo entendidos.

O objetivo da sustentabilidade, tão perseguida e pouco alcançada ainda nos tempos atuais, seria francamente facilitado se, de fato, fosse alterada a postura dominante intuída pelo “homem científico” que se entende  preponderante a “todo o mundo”. Lamentavelmente, o que se tem observado com muita frequencia é a busca do que podemos chamar de uma “sustentabilidade legal”, entendendo-a como a observância/vigilância da lei e dos normativos sobre as intervenções físicas realizadas pelo homem na natureza. E isso não é o bastante. Enquanto os projetos de engenharia buscarem, apenas, o enquadramento nos ditames legais, não será atingida a plenitude do conceito de “projeto sustentável”. Apenas a internalização desse conceito, como parâmetro de projeto, possibilitará sua concretização plena. E ela, por sua vez, nos obriga a uma nova compreensão de mundo e da relação homem-natureza.

A internalização dessas variáveis nos projetos de estradas traz vários desdobramentos práticos, que vão desde a postura e qualificação dos profissionais requeridos para sua concepção, até as soluções de engenharia, escolhidas entre as possíveis alternativas que se apresentem para vencer os desafios das intervenções. No primeiro caso, passamos a lidar com equipes interdisciplinares, compreendendo engenheiros, arquitetos, sociólogos, arqueólogos, biólogos e outros profissionais ligados a área ambiental e social. No segundo, consideramos a necessidade da reorientação de critérios de projeto e tecnologias a serem empregadas. Nesse particular, referimo-nos, abrangentemente, a exercícios de “criatividade” que podem levar, por exemplo, a um traçado de rodovia que, não necessariamente, obedeça a um racionalismo absoluto,  aceitando sinuosidades, rampas, variações nos materiais de pavimento, alternativas para contenção de encostas, enfim, concessões “ao melhor traçado” e ao “menor custo”, observadas as condições de segurança exigidas. Também nos referimos a soluções arquitetônicas que viabilizem e incentivem a visualização de paisagens ou mesmo o contato dos visitantes com antigas interferências  humanas que guardam história. Da mesma forma, soluções que observem requisitos facilitadores da preservação da fauna e manutenção de algum tipo de vegetação que não deva ser sacrificado. Novas necessidades a influírem na concepção dos projetos e cuidados de execução. São critérios novos que relativizam a tradicional avaliação beneficio X custo, considerando que introduzem variáveis para as quais não temos familiaridade de estabelecer “valor”, uma vez que não se trata de valor monetário. Outros empreendimentos de engenharia demandarão peculiaridades próprias de projeto e cuidados especiais em obras, mas, essencialmente, devem concorrer para o mesmo propósito final de considerarem uma nova relação entre o homem e a natureza.

Por fim, a inclusão – que não é recente – da sociedade no processo decisório sobre intervenções que lhe afetam diretamente, traz um outro leque de desafios com os quais  ainda não nos acostumamos a lidar com facilidade, resultando em freqüentes exageros, de ambas as partes – sociedade e empreendedores -, na disputa por fazer valer, cada lado, seu ponto de vista. Nesse ponto, ainda estamos fragilizados quando as partes envolvidas e interessadas diretamente no empreendimento buscam amparo intransigente na defesa ou no ataque a processos, normas e leis, para fazerem valer suas opiniões, buscando, em entrelinhas, muitas vezes burocráticas, suas razões fundamentais.  É ao que nos referimos quando citamos a postura propositiva do que chamamos de “sustentabilidade legal”, como solução para os conflitos de opiniões.  Sem prejuízo da extrema importância desses instrumentos de convívio democrático nas relações sociais, acima de tudo é preciso que os debatedores incorporem outras posturas, como decorrentes da compreensão de que novos paradigmas estão sendo  cunhados.

As obras devem servir aos homens, trazendo benefícios que não podem ser desprezados. Isso não significa que, necessariamente, se alterará a natureza de forma irresponsável. O desafio, que não se restringe a construção de estradas, é a compreensão de que somos parte do todo, que não comandamos a natureza nem somos superiores a ela e, sim, parte dela. Significa que as ciências exatas nos fornecem ferramentas indispensáveis, mas insuficientes para lidarmos com a dimensão intangível dos grandes desafios inerentes às grandes obras de engenharia.  É preciso que se desenvolvam e se aprimorem métodos e ferramentas que auxiliem na operacionalidade dessa perspectiva de mundo.  A tecnologia não tem deixado a sociedade ao desamparo, disponibilizando, cada vez mais, soluções para os desafios. Saber usa-la com critério é a tarefa que compete aos profissionais.

 
JOSUÉ  SETTA
Engº Civil com Especialização em Engª Sanitária pela UERJ (1973);
Professor da UERJ e Consultor de Empresas
Mestre e Doutor pela COPPE/UFRJ, na área de Planejamento e Gestão Estratégica.

PRINCIPAIS FUNÇÕES EXERCIDAS

  • Secretario Executivo e Ministro Interino de Ação Social (responsável pelas Políticas de Habitação e Saneamento Basico);
  • Assessor da Presidência da Republica / Secretaria de Assuntos Estratégicos;
  • Diversas Missões Oficiais como Representante do Brasil para atividades relativas ao Saneamento, Habitação e Políticas de Emprego e Renda;
  • Responsável pela criação do Fundo de Desenvolvimento Social e primeiro Presidente do seu Conselho Curador;
  • Assessor da Diretoria do antigo BNH para áreas de Saneamento e Habitação;
  • Consultor do Programa de Desenvolvimento Institucional para as Empresas Estaduais de Saneamento – Parceria BNH / Organização Panamericana da Saúde;
  • Diretor Técnico da Associação Brasileira de Credito Imobiliário e Poupança;
  • Condecorado com a “Comenda da Ordem do Rio Branco” por serviços prestados ao País.

Fonte: Prof. Josué Setta - DCCT / FEN / UERJ

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Em 17/05/10 15:24 Weber Figueiredo disse:

Pensando a Engenharia sob a ótica da sustentabilidade, um passo adiante. Parabéns, professor Josué.